Logo, a encriptação, enquanto impossibilidade de acesso à linguagem normativa, manifesta-se não
apenas no direito ou na constituição, mas nas instituições que exercem o poder.
Cabe, no entanto, considerar que não há uma teoria ou um agente descolonizador capaz de por
si só alterar o estado de coisas narrado na primeira seção. Resta superar perspectivas de “terra
arrasada” ou de completo desalento político e jurídico, ambas visões corrosivas das dimensões de
utopia, especialmente em tempos conturbados. Por outro lado, não significa endossar a perspectiva
ontologizada de uma “ilha democrática”, na ilustração cinematográfica de Wakanda (Marvel,
2018) ou de uma “pureza epistêmica” de Abya Yala (Almeida; Silva, 2015) a ser encontrada ou
resgatada.
Portanto, a democracia passa a ser entendida como único lugar para a política, porque é o não-
lugar no qual a linguagem ainda não significa nada e tudo ainda está para ser decidido (Restrepo,
2016, p. 02). Expressa, assim, o contraponto necessário entre as ideias de encriptação do poder e
de “simulacro de democracia”.
Esse primeiro elemento evidencia um conjunto de relações sociais assimétricas produzidas
dentro de concepções demarcadas por ranços de colonialidade, que apresentam enunciações
conflitantes com a ideia de “universalidade”, apregoada por uma enganosa universalidade
fundamentada em individualidades hegemônicas. Aliás, a universalidade é, por si só, uma
violência contra a singularidade ou a particularidade, pois, centrada na opinião individualista
viabiliza projetos de poder político impostos para e contra a coletividade.
Por essa razão, a proposta de desencriptação proclama a democracia liberal como um simulacro,
no qual a tomada de decisão é produzida em ambientes cada vez mais restritos com progressiva
diminuição do espaço comum e principalmente do “ser em comum”. No entanto, a própria ideia
de decolonialidade ou de concepção pós-colonial não é exequível em sua totalidade, essa limitação,
em alguma medida, também compõe a ideia de povo.
Diante disso, a proposta teórica seguida nesse artigo consiste na reviravolta do pensamento ou
simplesmente no giro de tuerca (Restrepo, 2014), quer dizer, a “torção da porca”, para comprimir
os espaços da colonialidade não pelo “parafuso”, eixo central de fixação, mas pelo elemento móvel
dessa maquinaria constitucional. A democracia seria, então, a repetição da diferença em sua
enésima potência, tanto para a produção de si (ontologia), quanto para a produção do mundo
concreto (política) ou dos mundos possíveis (utopia).
Logo, o exercício permanente e indeclinável da diferença constrói o lugar da diferenciação
absoluta (Restrepo, 2014, p. 203), onde cada indivíduo é pertencente a um “chão comum”
(background) coabitável com a pluridiversidade e não com a “universalidade”. Sentido comum
que possui uma tripla natureza integradora, qual seja: a diferença enquanto origem do mundo, ao
mesmo tempo em que a resistência é o exercício de sua potência e, por fim, uma vocação
permanente de atualização ou de atualidade (Restrepo, 2014, p. 204).
De certo modo, ao se estabelecer um sistema rigoroso de verdade estabelece-se com isso a
confrontação entre as identidades, a disputa no lugar da cooperação, o antagonismo no lugar do
agonismo, o individualismo em detrimento do senso de coletividade (bem comum) etc. Portanto,
desencriptar não significa somente uma ferramenta crítica ou semiótica da linguagem, senão